Shannon Botelho, 2024
“L'exactitude n'est pas la vérité”
(A exatidão não é a verdade)
Henri Matisse
Desde tempos imemoriais o ser humano estabelece, com a imagem, uma forma de comunicação sensível capaz de intermediar a sua relação com o mundo. A pintura, depois definida como uma das “Belas Artes”, sofreu a agência de incontáveis personagens que, sobre ela, foram incrementando ideias, discursividades, estruturas de poder e imanência. Na latência do contemporâneo, cabe-nos, mais uma vez, estabelecer uma reflexão sobre estas coloridas estruturas bidimensionais as quais Andrea Brazil tem se dedicado a criar e nos apresenta como Pinturas.
A experiência da pintura para a artista se constitui como um exercício de conexão com as memórias, lugares e com a própria realidade. O que vemos nesta exposição trata de um conjunto de vivências singulares de interação de Andrea Brasil com o seu entorno, ou melhor, com a sua própria vida. Muito além de uma prática solipsista de produção, a artista desenvolveu um interesse particular pelas cores, pigmentos vivos e formas que, apesar de tenderem a uma geometria rígida, narram o processo e memória de cada trabalho. Pois, nascem de uma experiência vivida, estruturando-se como uma forma autônoma e suficiente.
Andrea vive e trabalha em São Paulo, sem, contudo, perder seu vínculo com a Bahia, notadamente a cidade de Salvador onde cresceu e desenvolveu um olhar aguçado para as formas e estruturas cromáticas oferecidas pelo contexto urbano. A relação entre o corpo e a cidade, a percepção e a sensação do lugar, dualidades rotineiras de quem acolhe a experiência da cidade como uma prática estética, consolidaram um repertório imagético e formal do qual a artista pode lançar mão sempre que necessário. Sejam as amarrações de velas em barcos, remos pintados, artesanatos, fachadas de antigos casarios, na Bahia, ou, em São Paulo, arranha-céus, carros, avenidas, casas em demolição, os encontros de ruas e pessoas, todos os elementos definem e identificam os lugares que afetuosamente tornam-se imprescindíveis para a sua prática e experiência da pintura. Por esta razão, por meio de uma pesquisa visual, retoma cada fragmento de imagem-memória e opera uma readequação plástica em suas formas e cores como que, se condensando a imagem, pudesse torná-la ainda mais vigorosa e efetiva.
As formas que verificamos nos trabalhos, certamente não são fidedignas ao que poderíamos verificar em caminhadas pelas ruas da cidade. Mas, traduzem o resultado das vivências, objetos e memórias que a artista elegeu como fundamentais para si, transmutando-as em composições visuais ordenadas e vibrantes. Cada obra devolve para o mundo um aglomerado de sensações e recordações. A abstração das formas reais que recolheu do seu entorno estão dispostas em arranjos formais rebuscados e delicadamente preparados para nossa contemplação. A atmosfera de cor, que existia apenas no interior das pinturas e foi sempre fundamental para execução de qualquer imagem, na poética de Andrea Brazil torna-se área de projeção e pulsação de cor no espaço real. A pintura, neste caso, é objeto estético pleno de experiência e interação com o mundo, não apenas uma superfície têxtil colorida para desempenhar uma função decorativa.
Por fim, podemos afirmar que todos os trabalhos nesta exposição são algo além de Pinturas, pois possuem uma dupla definição de objeto estético e de experiência vivida. Como na epígrafe, tampouco importa a exatidão, pois ela não corresponde à realidade. Antes, uma possibilidade de interação sensível com o mundo e com a própria arte que desvela ao nosso olhar outros horizontes. As obras pequenas ou grandes, em conjunto ou unitárias, monocromáticas ou multicoloridas, compõem não somente uma partilha da experiência da pintura com o público, mas sobretudo uma possibilidade de experimentar ativamente o presente.
Marta Picchioni, 2023
Caruru é nome com gosto.
Lambança é dança de língua.
Coisa de se comer com o corpo inteiro
refazendo-se pelas mãos e bocas
de quem o degosta.
Lambança é dança de língua.
Coisa de se comer com o corpo inteiro
refazendo-se pelas mãos e bocas
de quem o degosta.
Provamos de um corpo memória:
da viscosidade do dendê ao quente-pimenta,
do quiabo em baba aos vestígios do camarão.
da viscosidade do dendê ao quente-pimenta,
do quiabo em baba aos vestígios do camarão.
Entre tempos-temperos
Kalulu, caá-ruru
a presença preta e indígena em terras baianas
Seu gosto múltiplo conecta
língua de quem come, mãos de quem faz.
Kalulu, caá-ruru
a presença preta e indígena em terras baianas
Seu gosto múltiplo conecta
língua de quem come, mãos de quem faz.
Caruru,
convite à boa mesa
arte de rejuntar aquilo que uma certa tradição separou.
ocasião para se recriar
um estado de oferenda
à nós, Exu e Xangô!
humanos e deuses que sabem o que é bom
convite à boa mesa
arte de rejuntar aquilo que uma certa tradição separou.
ocasião para se recriar
um estado de oferenda
à nós, Exu e Xangô!
humanos e deuses que sabem o que é bom
Lambuzar-se de tinta e comida
tarefas de um corpo que sabe onde vai e,
ao responder às interrogações de seu tempo
nos oferece seu nó.
tarefas de um corpo que sabe onde vai e,
ao responder às interrogações de seu tempo
nos oferece seu nó.
Shannon Botelho, 2024
No contexto atual da cultura, as imagens se proliferam em progressão geométrica e ocupam todos os espaços disponíveis para o olhar. Se até a virada moderna – no final do século XIX – estas cumpriam um papel informativo e contemplativo, hoje elas agenciam de modo incisivo regimes de visibilidade, através dos quais são estandardizados padrões de consumo e beleza. A abrangência das imagens – quando passaram a ocupar as telas dos smartphones –, foi potencializada e passou a firmar um modo inédito de mediação com o mundo real, tornando a artificialidade da miragem em uma imperiosa verdade. Recentemente foram anunciados aplicativos com inteligência artificial facilmente capazes de modificar representações seculares como a Monalisa, de Leonardo Da Vinci, em frações de segundos. Ou ainda, construir uma obra inédita, como se fosse autoral e verdadeira, de um artista que viveu em séculos passados. Ao mesmo passo em que todas estas novidades agitam a sociedade, acendem um alerta sobre o destino das imagens, sua função e influência na vida cotidiana das pessoas.
A disputa pelas imagens, apesar do alarde contemporâneo, não é algo recente. Certamente a amplitude de seu alcance hoje é infinitamente maior que antes, porém se pensarmos no poder atrelado a elas, perceberemos que há uma continuidade que se estende desde a Antiguidade. Basta pensarmos nas moedas cunhadas com a face dos imperadores romanos que circulavam por todo o império, mesmo que a figura retratada jamais tivesse pisado nos longínquos territórios. Em suma, a imagem sempre chegou onde os discursos e presenças não alcançavam. Toda imagem é instrumento discursivo a serviço de um poder, por isso elas são tão disputadas, questionadas, louvadas, apagadas.
Uma questão que atravessa todas as disputas pelas imagens é a sua própria natureza, se elas são figurativas ou abstratas. Essas definições, que ganharam vulto ao longo do século XX, notadamente no contexto das vanguardas históricas, deram conta de sistematizar e nomear as imagens conforme as suas estruturas formais. A imagem figurativa – naturalista, realista, estilizada – teve maior lastro ao longo do tempo, uma vez que desde a sua sistematização no Renascimento, os artistas formulavam suas narrativas visuais por meio delas. A ideia de representação pela imagem figurativa tornou-se um cânone e, somente com as primeiras experiências abstratas de Hilma af Klint ou de Wassily Kandinsky, por exemplo, é que as abstrações passam a ocupar um lugar de significação no léxico visual da sociedade. A aceitação da abstração, com o consequente deslocamento da figuração de sua centralidade, aconteceu de modo gradativo até alcançar o seu auge na década de 1950 com as poéticas expressionistas abstratas nos Estados Unidos, Concretistas no Brasil e com as abstrações líricas no continente europeu.
Entretanto, apesar das diferenciações, todas as imagens são naturalmente abstratas. Ou seja, sempre serão virtualidades, projeções do real, consciente ou inconsciente, dos artistas. Imagens, quando desejam narrar a realidade, operam como recortes do mundo apresentados em superfícies artisticamente trabalhadas. Quando não, são arranjos artísticos sobre as mesmas superfícies e que utilizam os mesmos mecanismos de produção que os demais. Em suma, poderíamos dizer que as imagens são sempre instrumentos sensíveis de interação do artista com o mundo e cada qual constitui um léxico particular para narrar as suas próprias subjetividades, histórias e trajetórias.
Recentemente diferentes pautas sociais, que se desdobram em questões pertinentes ao campo da arte, reivindicam nas linguagens figurativas um meio de comunicar fatos e condições não evidenciadas ou apagadas pela história oficial. Exposições em instituições museais, galerias e feiras têm abordado as práticas figurativas com relevante posicionamento, conferindo às imagens um destaque e aos representados um reposicionamento social e histórico. Contudo, no seio destas produções, os signos visuais presentes nas obras, mesmo que figurativos, operam simbolicamente os sentidos de um lastro cultural maior que a própria obra ou exposição. Ou seja, mesmo as figurações contemporâneas tangenciam as abstrações culturais que mantemos e aprimoramos cotidianamente.
Por esta razão, criamos nesta exposição uma zona franca para a abstração e para a figuração, um espaço onde as definições estão desarmadas tal qual um armistício entre os ambas as partes que travam uma luta secular pela hegemonia da imagem. Escolhemos para conceituar a mostra um verso do poeta Manoel de Barros que sentencia ser melhor que nomear, “aludir”. Não nomeamos simplesmente, aludimos a imagem sensível como forma mais destilada de expressão humana. Ou ainda, nesta mostra, nomeamos aludindo as formas diversas da imagem, as áreas de contato entre os trabalhos selecionados e as possibilidades de compreensão que emergem desta afluência de poéticas na Galeria Cássia Bomeny.
Selecionamos um grupo de sete artistas contemporâneos que discutem as clivagens entre a figuração e a abstração enquanto encaminhamento narrativo para os seus trabalhos. Em todas as obras, figuração e abstração são ferramentas alusivas de outros sentidos, de elementos exteriores a elas. No entanto, podemos dividir a mostra em dois posicionamentos, um mais próximo da abstração e outro, da figuração. Concentram-se mais perto do eixo figural, os artistas: Bea Machado, Lucas Finonho, Renan Andrade e Vera Schueler Araripe. Nas obras selecionadas para este núcleo as figuras se apresentam como signos visuais que descolam para fora da superfície da tela a compreensão do observador. Ou seja, realizam a partir da imagem um processo de abstração da figura para alcançar as narrativas culturais que ali estão explicitadas. Do outro lado, pendentes à experiência abstrata, as artistas: Andrea Brazil, Carolina Colichio, Consuelo Verszaro e Hugo Mendes. Nos trabalhos deste núcleo, as abstrações operam o sentido inverso. São formas abstratas que aludem a algo ancorado na realidade e não simplesmente nas experiências sensíveis do artista como defendem as estritas teorias da abstração artística, ou melhor, as estruturas abstratas mimetizam como um índice os fragmentos do mundo visto pelas artistas.
Não pressupomos que esta exposição opere como um instrumento de definição dos conceitos abordados, nem mesmo um discurso limitador das obras e seus desdobramentos. Não buscamos uma verdade unívoca. Como elaborou o filósofo Jacques Rancière, buscamos a partilha do sensível. Desejamos que deste lugar emerjam ideias, inspirações e confluências para as poéticas artísticas. Pois, na impossibilidade de esquadrinhar as produções, enrijecendo as classificações, exibimos as obras para que disponíveis ao olhar de todos, seja possível mais do que nomear, aludir as suas potencialidades em seus contextos singulares.
Amanda Arantes, 2022
Essa exposição reúne obras de duas artistas que se debruçam sobre temas distintos: Sofia Lotti pinta paisagens, Andrea Brazil produz obras abstratas. Ambas compartilham o interesse na cor como elemento fundamental de suas pesquisas, e compartilham também a recusa em declarar um significado unívoco em seus trabalhos. Reunidas aqui, as obras se apresentam ao mesmo tempo cheias e vazias de mistério: ora como pura superfície, ora criam espaços por onde podemos adentrar.
Certos aspectos de suas trajetórias são pertinentes para a compreensão de suas obras. Sofia viveu por muito tempo em uma fazenda situada nos arredores de Poços de Caldas. Iniciou sua prática artística com trabalhos abstratos, depois passou a observar e fotografar elementos da natureza - desde folhas de eucalipto a paisagens rurais -, produzindo imagens a partir das quais realiza pinturas em têmpera ovo e desenhos em pastel seco - material que a própria artista produz – além de bordados e tapeçarias que permitem expandir suas experimentações em torno da representação da paisagem. Andrea vem de Salvador e tem grande afinidade com as paisagens marinhas, que ainda vivem em suas memórias da infância. Sua prática partiu do desenho e da ilustração para então chegar à pintura, inicialmente figurativa e agora abstrata, sempre interessada nas possibilidades de criar espaços a partir de campos de cor que são pontuados por composições geométricas.
Suas trajetórias percorreram caminhos diversos para finalmente se encontrarem aqui, onde, lado a lado, iluminam-se reciprocamente. Nos trabalhos de Sofia, o empilhamento de áreas de cor, dispostas mais ou menos horizontalmente e pontuadas por elementos que remetem a formas orgânicas, torna a imagem reconhecível enquanto paisagem. No entanto, algo se oculta na sombra. Há sempre algum elemento indefinido, uma área que poderia ser um arbusto, um pedaço de chão, ou qualquer outra coisa que se mantém inacessível. Do mesmo modo, as obras de Andrea exigem do observador um olhar ativo, um esforço para tentar ver algo que nunca se mostra por completo. Em suas pinturas, a artista faz surgir espaços a partir da vizinhança das cores e do recurso do desenho – realizado em grafite sobre a pintura - que imprime formas possíveis à composição. Suas obras dão a ver o processo da pintura, suas metamorfoses, tudo aquilo que é possível ver por debaixo da superfície.
Sofia e Andrea vivem e trabalham em São Paulo e talvez por isso suas obras compartilham um certo sentimento de deslocamento, um desejo de pintar paisagens de lugares situados longe daqui. É no espaço do ateliê e no trabalho incansável da pintura que as duas artistas materializam suas experiências estéticas, mantendo suas obras abertas, recusando a necessidade de fazer grandes declarações, e sempre sensíveis às paisagens que percorrem em seus trajetos e memórias.
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Shannon Botelho, 2021
A afirmação, que parece não se sustentar, encontra um sentido muito preciso nesta exposição ao enredar as três pesquisas visuais que aqui se apresentam. Reunidos incialmente por uma afinidade formal, os trabalhos ordenam um sentido pouco explorado nas poéticas que flertam com a herança construtiva e seus desdobramentos. Entretanto, não desejamos convocar o programa concretista brasileiro, nem mesmo propor outras significações para as suas continuidades. Antes, desejamos ampliar os meios de acessar as obras que, pela forma, inevitavelmente atravessam o seu universo e constroem para si, outros modos de ordenar o espaço visual e as ideias através da noção de afeto. Por esta razão, Luciano Macedo – artista representado pela galeria – convida outras duas artistas, Andrea Brazil e Mariana Guimarães, cujos trabalhos selecionados partilham um mesmo conjunto de interesses.
Não se deve confundir afeto com passividade, nem com a primazia dos sentimentos sobre a razão. Como definiu Spinoza, afeto é o que move a alma, força capaz de gerar movimento, fluxo de vida e, consequentemente, interesse. Resulta desta força motriz, o que aqui podemos verificar, para além das formas geométricas presentes em todos os trabalhos que nascem de uma percepção aguçada do tempo, da vida cotidiana. Não são resultantes de simplificações formais ou de estruturações geométricas fechadas em si mesmas, antes exploram as diferentes aparições dessas formas na vida prosaica transmutando-as para a superfície das obras.
De um modo bastante peculiar, os trabalhos selecionados para esta exposição falam de vida. Nascidas em contextos distintos, todas resultam do dia a dia dos artistas, que observam a projeção das sombras nos espaços, as cores nos muros das cidades, os frisos dos carros, as fachadas dos prédios, a retidão geométrica dos cubinhos de legumes para uma sopa. Sim, pois, se aos trabalhos construtivos foi negada uma ligação com a vida, aqui afirmamos que a geometria que nos interessa é sensibilizada pela vida e que, sem este estado de afeição, ela não subsiste no mundo contemporâneo.
Assim como é a vida, repleta de caminhos não retilíneos, os trabalhos de Luciano Macedo espelham alegoricamente as possibilidades combinatórias da geometria sem perder o contato com o cotidiano. As formas dispostas em arranjos progressivos quase simétricos, trazem consigo em uma dimensão simbólica as escolhas que fazemos. O mesmo acontece nas obras de Andrea Brazil, onde as formas subtraídas de frames do cotidiano endossam as memórias e falam do tempo, do processo e de escolhas. Os bordados geométricos de Mariana Guimarães não são diferentes, pois apresentam uma pesquisa sobre o cuidado e intimidade. Sejam os arranjos visuais de Luciano, os planos geométricos de cor de Andrea ou a geometria sensível de Mariana, todos os trabalhos falam de uma imponderabilidade da forma plástica, esta sim, incompatível com a geometria.
Por isso, Forma é Afeto. Ao livrar-se dos limites da geometria estrita e ao abraçar a imprecisão do criar, estabelecem sentidos específicos para os seus trabalhos, distanciando-se das noções prontas sobre a abstração geométrica e lançando-se no terreno da descoberta, do tempo. Fica, portanto, o convite para nos aproximarmos dessas formas imponderáveis, deixar que elas se comuniquem conosco, contando o quanto de afeto trazem para nós.
Vivi Villanova
São Paulo, Agosto de 2021
Colei um aviso no espelho:
É impossível odiar a matéria e amar a forma.
- Louise Glück
Os oito pontos do verso que dá título à exposição de Andrea Brazil e Fabiañá Préti, guardam em si um poema de amor à matéria. Este mesmo ponto-forma que no coração da poeta germina palavras, na mão das artistas é matéria prima a observar caminhos. Nas pinturas aqui reunidas, o ponto se põe em movimento pelo desejo de criar composições que oxigenem a faísca de ser e, contornando o espaço, investiga diálogos entre as nuances do indivíduo e a beleza do universal.
Nas telas de Andrea Brazil, o ponto se move ao sussurro do linho que carrega em si a tradição da arte, se arrisca pelas tramas de um tecido que há mais de cem anos acompanha a família e pelas paisagens da infância também registradas nas pinceladas do avô. Objetos do cotidiano compõe campos de cores autônomos que se formam à medida que o olho, sem o acolhimento da perspectiva, é encorajado a exercitar sua autonomia. A verticalidade que extrapola os limites da tela faz desvios inesperados e enfatiza o estranhamento, o mesmo que o corpo sente ao buscar uma fórmula própria de deslocamento no mundo.
Na pintura de Fabiañá Préti, o ponto escorre, canta e cala. É um ponto música, mas também um ponto história. A pincelada carrega o contorno dos azulejos modernistas, experimentações da arte óptica e o pontilhismo praticado quando criança. Na tela 08 da série Faz Litoral, toda a composição acontece a uma distância da borda, respeitando o silêncio entre o pensamento e a fala. Silêncio que a artista cultiva como a materialidade do estar. No grupo de pinturas em voil, as linhas pintadas na frente e no verso interagem com as marcas do tecido criando estâncias para o olhar. O corpo se resguarda na ilusão do através.
“É impossível odiar a matéria e amar a forma” diz um dos avisos colados no espelho de Louise Glück, autora do verso que dá título à exposição. Andrea Brazil e Fabiañá Préti reiteram o pensamento da poeta, celebrando o ponto como matéria primeira que guarda em si a potência geradora da forma. E assim como o poema que habita os oito pontos do título, é no pulso de dentro e não nos contornos de fora que a pintura se organiza.
Shannon Botelho, 2021
Qualquer tempo é tempo. A hora mesma da morte é hora de nascer.
Nenhum tempo é tempo bastante para a ciência de ver, rever.
Tempo, contratempo, anulam-se, mas o sonho resta, de viver
Carlos Drummond de Andrade
Imperativo sobre tudo e todos o tempo é, antes de tudo, uma experiência. Face dupla de algo, ele pode ser criador ou criatura, medida ou combustível. O tempo é fluido, múltiplo. Caracteriza-se por uma constante que nos traz até aqui hoje para celebrar os 10 anos de O Ateliê 100, lugar onde Ana Rey, Marinalva Rosa e Rita Heckert realizam suas pesquisas e produzem os seus trabalhos. Nesta ocasião, as anfitriãs convidam outras duas artistas, Andrea Brazil e Michelle Rosset, para comporem a exposição.
Assim como o tempo que se apresenta diferente para cada indivíduo, as poéticas das artistas possuem interesses peculiares, revelam um enfrentamento do mundo e do transcorrer dos dias. Apesar das diferenças formais e de pesquisa entre os seus trabalhos, há um nexo entre eles que se estabelece no interesse pela cor e pela forma no exercício ampliado do desenho e da pintura. Em virtude destes interesses, os quais as artistas convidadas compartilham, é que pensamos em abordar as Experiências do Tempo. Pois, se o tempo é uma medida e um meio pelo qual experimentamos o mundo, todos os trabalhos aqui encapsulam em si mesmos os momentos de suas criações, concepções e projeções.
Ao longo destes dez anos as artistas de O Ateliê 100 puderam desenvolver seus trabalhos, transitando entre os domínios da pintura, do desenho, da escultura e dos objetos. Em Experiências do Tempo vemos que o interesse pelo cotidiano, seja nas formas reais do mundo, das frestas das janelas, nas folhas de revistas, tornou-se um meio de experimentar a própria vida, revelando-se como um modo comum de operação poéticas nos trabalhos.
O relembrar e o projetar encontram-se no campo movente do agora. Aqui não falamos simplesmente do passado ou do futuro. Antes, adentramos o presente com as vivências passadas e as ideações do porvir. Experiências do Tempo, portanto, é um espaço de partilha das memórias, dos sonhos e daquilo que desponta como horizonte possível para cada uma das artistas e suas poéticas.